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terça-feira, 23 de janeiro de 2024

O Autor, ainda

Respondendo ao texto de Dudley Andrew, Teixeira Coelho revisita a tese de Foucault sobre o fim do autor

É no mínimo curioso que ainda se discuta,hoje, se é possível ou não voltar a falar em autoria, se o autor existe ou não, se o autor — depois de um período de ostracismo — voltou à cena em carne e osso ou sob o disfarce de um conceito meio vazio, meio forçado, meio envergonhado. Em todo caso, antes de discutir se o autor de fato voltou e como voltou, talvez fosse interessante indagar por que, afinal,a tese do fim do autor pôde ser formulada num determinado momento,reexaminar as condições em que foi gerada a tese de Foucault — uma vez que é ele quem se cita como o autor do fim da ideia do autor, embora outros tenham na mesma época sustentado a hipótese do fim do sujeito em geral, situando-a numa perspectiva histórica e determinando o lugar que ela ainda pode ocupar na reflexão contemporânea. Esta providência torna-se mais oportuna pelo fato de que acaba de aparecer, na França,o primeiro volume de uma ampla coletânea de textos de Foucault que permaneceram inéditos ou tiveram no passado uma publicação um tanto marginal. É providência duplamente oportuna porque esse primeiro volume de Dits et écrits “Qu'est-ce qu'un auteur?”, a conferência pronunciada por Foucault em 1959, há 35 anos portanto, durante muito tempo acessível apenas através de periódicos de pequena circulação e que contém a tese do fim do autor — republicação esta que pode fazer crescer o risco de ver ressuscitada, na qualidade de produto fresco, a ideia do fim da autoria. Esse é um dos efeitos perversos da palavra impressa: ela nunca envelhece, ou envelhece bem menos do que a imagem no cinema, e apesar de sua perenidade forçada constituir-se às vezes em causa de vergonha ou incômodo para seu autor, seu frescor imaginado está sempre pronto a acionar, em leitores que tomam o presente como o único extrato da duração, esquemas conceituais, históricos e existenciais completamente datados ou deslocados. 

Naquela conferência, Foucault discutia os fatores históricos que fizeram emergir o nome próprio como categoria de atribuição da responsabilidade por um texto (ou autoria, por ele chamada de "função—autor"). Foucault recusava noções clássicas utilizadas pela história das ideias que assumiam a tese da autoria e que incluíam entre outras, o postulado da unidade da obra e da originalidade criadora. A procura da unidade de uma obra, de sua coerência interna, seria uma violência imposta do exterior ao texto (literário, cinematográfico etc.) — em outras palavras, uma camisa de força vestida sobre um texto, e sobre quem o gerou, com um intuito redutor e manipulador, ou magnificente e prestidigitador. São conhecidas as recusas dos autores às tentativas de classificação de suas obras neste ou naquele movimento, tanto quanto a fragilidade de certas categorizações e o uso que delas se faz como uma muleta na ausência de uma hermenêutica verdadeiramente seminal. Foucault retomou essa queixa dos criadores e dela fez, com razão em mais de um sentido, uma arma de sua guerrilha contra o que considerava o establishment cultural. Reivindicando a liberdade de mudar de voz quando bem entendesse, não permitindo que lhe fosse cobrada qualquer coerência interna necessária à caracterização de um autor (“Preciso destacar que não endosso sem restrições o que disse em meus livros", repetiria Foucault mais de uma vez, criando uma frase que seria tomada, talvez não ingenuamente,como um escândalo intelectual no Brasil de 1994 ao aparecer sob forma análoga na boca de um candidato às recentes eleições), Foucault afirmava: 1) que um autor não era igual a si mesmo; 2) que na verdade não existia um autor mas apenas uma “função—autor" que, para efeitos localizados,se responsabilizava pela geração de um texto; 3) e que nem mesmo essa função—autor seria indispensável ou, em todo caso, que não seria indispensável que essa função permanecesse constante em sua forma; seria possível imaginar, escreveu, culturas em que os discursos circulariam sem que a função—autor se cristalizasse, isto é, culturas em que os discursos circulariam no "anonimato do murmúrio" — talvez o mesmo murmúrio apontado por Dudley Andrew no início de seu artigo. 

Esta tese de Foucault não veio do nada, abruptamente. A semelhança que ostenta com as proposições estruturalistas em vigor no momento são fortes demais para serem descartadas rapidamente, apesar da negação oposta por Foucault, mais de uma vez, à tese de que teria dívidas junto ao estruturalismo. No entanto, essa vinculação é tudo menos invisível. Também o estruturalismo afastou o homem do palco, substituindo-o por mecanismos impessoais com atuação independente da ação e dos desejos do sujeito e que tomaram o nome, neste corpo conceitual, não de "funções”, como preferiu Foucault, mas de "estruturas" (embora Roman Jakobson tenha desde logo falado da função poética de um texto ou de sua função fática etc...). O indício mais evidente dessa tendência está na famosa Leçon de Roland Barthes,que marcou seu ingresso no Collège de France e na qual consta a famosa observação a respeito do homem que não fala a língua mas é por ela falado. Essa era, em resumo, a tese do estruturalismo: não há mais um sujeito, porém apenas uma estrutura que se recria independentemente do sujeito individual e que dele se serve, seja qual for, para validar-se e ao sistema a que pertence. Nunca será demais lembrar que o estruturalismo tomou como objeto privilegiado de estudo e como plataforma de lançamento de seus foguetes teóricos as chamadas "sociedades sem história", as comunidades primitivas ou indígenas. Não faltaram descobertas que carregavam água para o moinho de Foucault ao afirmarem, por exemplo, a inexistência nessas comunidades da figura do artista, se entendido à maneira ocidental (isto é,europeia) como um indivíduo destacado dos demais por seus méritos singulares e sua marca específica. Não haveria autores nessas sociedades, propunham muitas formulações estruturalistas, porque a arte (que nessas sociedades não seria vista como arte) não estava baseada na ideia da originalidade criadora e na diferença. Eram conclusões consideravelmente apressadas ou enviesadas, necessárias à manutenção do sistema teórico estruturalista mas que não se sustentavam quando encaradas a partir do solo real que diziam estudar. É sabido que, por mais invisíveis que pareçam aos olhos do europeu esses traços de distinção, os membros de uma comunidade dita primitiva ou sem história sabem não apenas reconhecer o autor notável de um pote ou de uma cesta trançada e pintada como dão especial valor a obras que de algum modo se diferenciam das demais. Certos casos são ilustrações gritantes desse fenômeno. Os membros de algumas tribos pintam o corpo ou parte dele (body art, sem dúvida) com desenhos feitos pelo próprio indivíduo e que se distinguem bastante uns dos outros, ancorados que estão na ideia da diferença e da criatividade. A declaração da inexistência do autor nas sociedades ditas sem história, genericamente consideradas, foi, não raro, fruto da observação perfunctória de determinados jogos sociais nelas presentes ou da dificuldade em lidar com situações aparentemente paradoxais. Paradoxais porque, por exemplo, em algumas sociedades sem história, assim como na cultura chinesa arcaica e na cultura europeia renascentista de Michelangelo, alguém se tornava um autor quando era capaz de pintar ou desenhar ou gravar ou esculpir exatamente como um dos mestres consagrados. Apenas quando sua obra se tornava indistinguível da obra de um autor reconhecido é que o novo autor podia enfim assiná-la com seu nome. Até então, o aspirante a autor não passava de um murmúrio artístico ou artesanal. Apenas quando se tornava igual aos outros — pelo menos àqueles que formavam o panteão — o pretendente conquistava sua identidade específica. Apenas nesse instante sua autoria era reconhecida. No entanto, se o novo autor quisesse continuar a ser um autor a ponto de transformar-se em modelo a ser imitado por novos pretendentes, a partir daquele mesmo instante deveria ser capaz de fazer algo que os outros não fizeram, algo que o diferenciasse de seus iguais... Provavelmente era esse contexto cultural que Jorge Luis Borges tinha em mente quando respondeu a uma pergunta sobre as influências sofridas por sua obra e os problemas subjetivos que isso eventualmente lhe acarretava. Sua resposta, soberba, é das que encerram a discussão: o problema não está em imitar ou não imitar alguém, disse Borges, a questão é ser inimitável...

Retornando ao ponto de partida, Foucault nadava, sim, nas águas do estruturalismo que privilegiava a estrutura em detrimento do sujeito. E não apenas a estrutura mas a estrutura vazia. A estrutura ausente, na fórmula de Umberto Eco. Para usar uma outra metáfora, Foucault seguia, sim, a corrente que partiu em busca de máquinas Kafka a respeito de uma máquina que, com agulhas e jatos de água, inscrevia na carne dos condenados a sentença proferida. A máquina é, neste caso, exemplo acabado de uma estrutura que opera por si mesma, eliminando a ação direta do homem e apresentando-se, na linguagem de Foucault, como autêntica função—carrasco (o que não é muito citado quando, eventualmente, se recorda essa máquina é que o oficial justiciador, que não mais crê em sua missão, liberta um condenado e suicida-se, deitando-se na máquina que,“enlouquecida”ou"paranoica”, se destrói na execução final). Outra máquina solteira igualmente famosa foi o quebra-cabeça conceitual proposto por Duchamp com seu Le Grand Verre-La mariée mise à nu par ses célibataires, même (O Grande Vidro — A noiva despida por seus celibatários, mesmo), imponente lâmina de vidro de 2,75 m de altura por 1,75m de largura, que se encontra hoje fincada no centro de uma sala do Museu de Arte da Filadélfia. O que se vê, pintadas na superfície transparente e não de todo ocupada pelas imagens, são formas ambíguas de aparência mecânica e de funcionamento incompreensível, desvinculada de qualquer racionalidade ou finalidade evidente, ou mesmo de impossível funcionamento: um hieróglifo, como já foi chamado, de alguma cena (supostamente) capital e incompreensível.Uma máquina sem autor que apenas exerceria uma função—arte, para insistir na linguagem de Foucault-Duchamp. Marcel Duchamp ,por falar nisso, é o grande antecessor de Foucault na tese da desnecessidade de um sujeito criador por trás de uma obra: seus ready-made são a materialização avant la lettre da função—autor e da função—arte. O indivíduo por trás de um ready-made nada mais faz do que coletar do mundo alguma coisa produzida por conjuntos que eventualmente englobem uma série de ready-mades não apresentam qualquer coerência ou unidade. Mais: toda e qualquer criação que haja nesse processo, que se realize antes da presença do indivíduo que o recolhe, se desenrola no "anonimato do murmúrio".

Propondo em 1969 a morte do autor, ou sua substituição pela função—autor, Foucault está assim banhado num certo espírito do tempo que se alimenta do estruturalismo dos anos 50 e 60, que remonta a Duchamp (O Grande Vidro é de 1915—1923) e que tem uma dívida ainda mais antiga (e mais ampla) com o marxismo e sua visão de uma história tocada não por personalidades individuais mas por grupos, classes ou massas que são autênticas funções—autor. Quando Foucault, em um movimento coerente com a conferência de 1969 sobre o autor, escreve dois anos depois um texto sobre Nietzsche (“Nietzsche, la genéalogie, l'histoire") para recusar a noção de origem — uma vez que essa noção ocultaria a descontinuidade radical dos eventos e acontecimentos e faria a História enredar-se nas quimeras de uma continuidade ininterrupta de causalidades —, as provocações de Duchamp no mesmo sentido já são antigas de seis décadas (o primeiro ready-made de Duchamp, o Porta-garrafas ,foi inicialmente exibido em público no ano de 1914). Não há portanto originalidade na proposta de Foucault — aspecto de que ele se orgulharia, considerando-se sua tese — mas há, sim, filiações e conexões com outras áreas e outros movimentos que propõem ou traduzem uma determinada sensibilidade histórica. Em outras palavras, mesmo que essa não fosse uma tese datada, há datas por trás dessa tese sobre o autor e essas datas exigem ser apreciadas em uma perspectiva histórica. Isto equivale a dizer que, se algo fez com que essa tese se justificasse num determinado momento, nada existe a priori que valide o prolongamento dessa sensibilidade e, menos ainda, a ressurreição extemporânea dela feita no último quarto de século. Para não ir muito longe, basta lembrar que o momento histórico de aparecimento dessa sensibilidade da redução da arte e, mesmo, da negação da arte e da auto-negação do artista, foi exatamente o momento marcado por duas guerras mundiais, cada uma delas consideradas, em suas épocas e com justa razão, apocalípticas. 

As conexões entre a tese de Foucault e o pensamento sistêmico do estruturalismo (para não mencionar as dívidas com o pensamento anárquico de Duchamp e com a ideologia finalista do marxismo) são demasiado fortes para que se dê muito peso às alegações em contrário de Foucault. Suas negativas, neste aspecto, surpreendem pela preocupação implícita de afirmar uma certa originalidade exatamente por parte de quem não apenas se diz desinteressado pela originalidade como convicto de que essa é uma questão irrelevante e, mesmo, inexistente. O fato, porém, é que, de modo análogo ao empreendimento de Duchamp propondo a possibilidade da existência de obras de arte feitas (quase) à margem do sujeito, e num procedimento similar ao do estruturalismo que via a trama cultural como algo independente da ação individual, também Foucault tratou de identificar os modos exteriores de constituição do sujeito. A interioridade do sujeito, para o Foucault que recusa as proposições da psicanálise (e isto é algo pelo que não se poderá censurá-lo), seria função da exterioridade das coisas. Para Foucault, como para Duchamp e para o estruturalismo, uma obra (um texto: tanto um filme quanto uma revolução) constitui-se ao largo de uma vontade e de uma ação individual — e se algum indivíduo conta para algo, não é senão como catalisador, conforme aparece no texto de Wollen citado por Dudley Andrew. O catalisador não é assim tão neutro como Wolle pretende. Mas o que importa de imediato, para que se possa determinar a viabilidade de sua sobrevivência, hoje, é saber o que, de ainda mais particular e imediato, levou Foucault a optar, naquele momento, pela tese do fim da autoria. Não parece possível compreender o cenário cultural em que surgem as ideias de “Qu'est-ce qu'un auteur?”sem recorrer à imagem da cultura francesa do momento como sendo uma cultura essencialmente narcisista. Não é novidade que a cultura europeia tem sido, de longa data, uma cultura narcisista, e menos novidade ainda que a cultura francesa tem se mostrado, na esfera da cultura europeia, particularmente narcisista. Para comprová-lo, basta ler, passagens de Tristes trópicos, de Lévi-Strauss. E nos anos 60 (como também nos 70) uma série de fatos como a revolta dos estudantes em maio de 68 em Paris, o aparecimento da escola althusseriana do neo-marxismo ou do pós-marxismo, a proposição da linguagem como atriz principal no espetáculo feérico do lacanismo — fatos mais conjunturais ou descontínuos (isto é, não amarrados por uma cadeia ininterrupta de causalidades, novamente para alegria de Foucault) que sistêmicos — fez com que esse narcisismo encontrasse ressonância nas caixas acústicas de quase  todas as academias* (sobretudo nas americanas e, claro, brasileiras), e se acentuasse. Isto é sabido. O que talvez não seja muito, pacífico é o entendimento da natureza desse narcisismo e suas consequências.

Para compreendê-lo será preciso fazer como Foucault que, apesar de recusar a psicanálise, com ela firmava ocasionais pactos táticos que permitiam alcançar determinado ponto a partir do qual era possível continuar viagem em melhor companhia. Estabelecida essa aliança instrumental, será possível ver a cultura narcisista não como uma cultura da autoafirmação, conforme o entendimento comum do narcisismo, mas como uma cultura da perda da individualidade, da vitimização e da paranoia. Como se depreende dos estudos de Christopher Lasch, o imaginário da marginalização, da expulsão, do movimento forçado do interior para o exterior, a impressão de que se está sendo manipulado e ocupado por forças estranhas é próprio da cultura narcisista. Muito mais e muito antes que uma cultura de afirmação da identidade, o que está em curso nesse momento é uma cultura do que, mais tarde, Michel Maffesoli iria chamar de "cultura da identificação", uma cultura que nega a uniformidade de um indivíduo ou processo ao longo de todas suas fases e circunstâncias (em inteira concordância com a tese de Foucault, tal como ele a vindicou na já citada passagem sobre seu não comprometimento com as próprias ideias) e que navega nas águas de um eu fluido, multiforme e problemático, definido pelos papéis sociais e pelos desempenhos individuais (neste caso cabe outra vez a figura do catalisador, de Wollen). Esta cultura do fluxo elimina a associação entre identidade e continuidade da personalidade (o que é um alívio, do ponto de vista de Foucault assim como exclui a possibilidade de que essa identidade seja definida a partir do interior da pessoa. Essa cultura terá seus traços, digamos, positivos e poderá ser vivida: "condições sadias", e terá seus traços negativos, pode ser vivida patologicamente. O lado patológico dessa estrutura do fluxo é seu aspecto paranoico: a perda da individualidade (por exemplo, a perda da autoria) é sentida como resultante de um processo do indivíduo, da vontade do indivíduo, mas como efeito de um jogo de forças muito superior ao indivíduo, e a ele exterior, contra o qual nada pode. Será essa a razão pela qual a esquerda criticará Foucault acerbamente. Sartre entende que há em Foucault o desejo de construir uma última barragem contra o marxismo e Simone de Beauvoir escreve que as ideias de Foucault são o instrumento mais útil e contemporâneo que a burguesia tecnocrática poderia desejar.

A essa cultura geral do narcisismo, a que Foucault escapou, muito pelo contrário, seria necessária, que para maior irritação do autor de História da loucura acrescentar traços biográficos do autor capazes de  uma compreensão, ou quase—compreensão, da natureza: catalisador — Foucault, da função — Foucault. Já se falou em niilismo perceptível nas página: Foucault, bem como no seu dandi ético. Talvez não se tenha destacado suficientemente outros de seus trabalhos como sua incapacidade confessada de
experimentar o prazer, sua “incapacidade profunda de sentir prazer" como ele dizia, e as relações em que traços poderiam ter com a gênese uma tese como a do fim da autoria. E ainda, sua manifesta soberba, como anota outro de seus comentado Pierre Lepape, para quem a ideia de pensamento anônimo, do saber do sujeito, da obra sem autor configuram nada mais, nada menos que os tradicionais atributos de Deus (como, aliás, aparecem ao final do artigo de Dudley Andrew). Não há autores existem, diz Foucault, "instauradores de discursos", “fundadores de discursividade", como ele mesmo portanto se via, que não apenas escrevem seus próprios textos como inscrevem e definem a possibilidade e os limites de Instituição de outros (talvez de todos) textos futuros... já são uma função—autor, isto é, uma estrutura—autor, uma quina solteira. Todos estes são traços passíveis de explicações sob mais de um aspecto, o recurso à teoria do apagamento do sujeito e, em particular, da negação do autor. Uma negação relativa, bem relativa, como se vê, uma vez que, para Foucault, ser autor é pouco: mais que autor, ele preparou ser uma função—paradigmática, atuando em uma espécie de moto-perpétuo teórico, algo como um deus contratual. Sob mais de um aspecto a obra de Foucault — há portanto uma obra e um autor, Foucault — é instigante e produto de concepções renovadoras. Depois dele (como também depois de Duchamp etc.), por exemplo, nenhum autor se sentiu preso a um mesmo estilo, a um mesmo modelo, a uma mesma voz. Depois dele (e de Duchamp etc.) foi possível com nitidez a "quimera da origem"e,  portanto, entender que cada momento histórico não é uma totalidade homogênea com significado único (o que o distingue de fato, que Foucault queria, dos estruturalistas) e que a História como um todo não é uma continuidade ideal e necessária feita de uma cadeia de causalidades (o que o divorcia do marxismo). Mas, o que em Foucault ainda é atual? Quase certamente, a dimensão ética de sua obra e de sua vida, lida como associada à "revolução dos costumes" (outra expressão forte demais) em geral e à causa homossexual em particular. O que seguramente não é atual fica por conta de sua tese da negação do autor. A moeda da função—autor não teve na década de 60, como não tem agora, curso planetário. Outras culturas não foram e não são narcisistas ou tão narcisistas como a cultura francesa dos anos 60 e 70. A brasileira certamente poderia ser acusada de outros desvios, mas fora do mundo acadêmico, não desse. Idem em relação à inglesa e à italiano. Talvez a cultura americana, entre to-as, tenha sido a que "estruturalmente" mais se aproximou e aproxima-se da francesa. 

A fascinação americana por Foucault, Barthes, Derrida, Lyotard, Baudrillard, Lacan etc. se explicará não apenas por uma subserviência acadêmica a modelos interpretativos desligados de uma realidade nacional, como acontece no Brasil, mas (pelo menos também) pela presença visível na cultura americana de traços fortes da cultura do narcisismo, ainda que esse narcisismo tenha, nos EUA, uma outra constituição (o que não o impede de desembocar na mesma cultura da perda da individualidade e da paranoia). Será preciso ainda, para explicar o poder inseminador das teses de Foucault sobre a reflexão americana, lembrar a tradição dos EUA de contraposição da personalidade individual e dos direitos individuais ao sujeito social e aos direitos públicos (para favorecer estes contra aqueles) que, de um lado, gerou há pouco os excessos do “politicamente correto”e que, de outro, fez a mente americana mais permeável à ideia foucaultiana da constituição do sujeito e das coisas (portanto, do texto, portanto do autor) a partir do exterior e não do interior. De todo modo, não só as culturas não são todas narcisistas, como tampouco estes são os anos 60 e 70. Para críticos como George Steiner e Harold Bloom, como para um número considerável de críticos brasileiros, as ideias do autor e da autoria nunca saíram de cena. Harold Bloom, por exemplo, recusando a opção tomada por Wollen na reedição de seu livro, como citado por Dudley Andrew, acaba de publicar seu panteão autoral que constitui o cânone ou os cânones da literatura ocidental. Sem o recurso à ideia da autoria será possível enfrentar a Bíblia e a Odisséia mas não Proust, Joyce, Peter Greenaway, Fellini, Guimarães Rosa, Machado de Assis. A ideia contemporânea (para não dizer pós-moderna) a respeito de autoria não será mais ,sem dúvida, a do século XIX ou XVI. Será uma ideia da autoria que não mais elimina de uma obra aquilo que contraria sua linha central,será uma idéia da autoria que não se preocupa mais com traçar o retrato de uma suposta unidade da obra. Será, mesmo assim,uma idéia a respeito de autoria. 

O que importa destacar é que a tese do fim do autor como exposta por ou derivada de Foucault não assinala, contrariamente ao que se pensou e ainda se pensa, um ponto de partida teórico, mas um ponto de chegada, um fim de linha teórico, uma estação terminal de um moderno trem teórico que partiu do centro intelectual da Europa em meados do século XIX para encerrar sua viagem com o apito da pós modernidade. Não uma linha de partida mas o dead end, o impasse de um percurso com várias estações intermediárias (Duchamp, o estruturalismo, o marxismo), todas mais ou menos desativadas hoje, ou servindo apenas, modestamente, como pontos de baldeação para destinações obscuras. A viagem desse trem não foi inútil. Não apenas outros aspectos da autoria foram abordados no caminho — talvez nem todos ainda suficientemente percorridos (como o que coloca a écriture cinematográfica, para usar um termo caro a Dudley Andrew, especificamente na montagem e em nenhum outro aspecto envolvendo a produção de um filme) — como se despertou a atenção para outros componentes do fenômeno textual, por exemplo o espectador (e não tanto o público, figura em que ainda insiste o artigo de Andrew), também ainda não suficientemente esgotado.

É um tanto surpreendente que a discussão sobre a não-autoria tenha se mantido tanto tempo, ou que esta seja ainda uma questão a se discutir. De certa forma, não há como não vê-la agora, se não como um modismo, em todo caso como um modo dos estudos culturais. Um modo como outros e entre outros (como, por exemplo, o atual modo de entendimento do filme a partir da pintura), com seu valor localizado mas que não é certamente o modo definitivo. Esse modo foi claramente um modo—ramal. O retorno à linha principal não se fará nas mesmas condições em que se iniciou a viagem, nem com o mesmo estado de espírito. A viagem seguirá agora, também isto é certo, mais livre dos pesadelos com a unidade e coerência da obra e do autor; e sobre todo o cenário poderá voltar-se um olhar mais abrangente e vagabundo, mais divertido. Mas de um modo ou de outro, com a visão de linhas paralelas ou não, a viagem continuará a ser feita no trilho da autoria.

Teixeira Coelho é professor da ECA-USP e autor de Dicionáriobrasileiro de bolso e Niemeyer-um romance.

Fonte: Texto original sem referências de identificação da publicação (p.96 a p.73)



sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

O Desautorizado autor, Hoje.

O conceito de autor, exaltado pelos Cahiers du cinéma nos anos 60 e desmontado pelos estruturalistas, volta a ganhar vida no interior mesmo do mercado cinematográfico.

Respire aliviado. A depuração terminou. Depois de uns 12 anos de sussuros clandestinos estamos novamente autorizados a mencionar o autor. Até mesmo a discuti-lo1. Desde 1990, os sinais nessa direção se multiplicam: Hors cadre dedicou um número inteiro ao “L'état de l'auteur"; Film quarterly publicou “Authorship and the cultural politics of film criticism", de James Naremore; e a editora Rutgers lançou A cinema without walls, de Timothy Corrigan, um livro que soa como um compêndio dos diretores talentosos de hoje e que inclui um capítulo específico sobre a condição atual do autor2.

Independentemente do que cada um de nós pensou, ou continua pensando, a respeito da crítica ideológica, a coisa ficava complicada quando chegava o momento de citar nomes, e mais complicada ainda quando se tratava daqueles nomes de peso cuja menção se justificava: Truffaut, Rohmer e, por trás deles, André Bazin. Sem querer fazer comparações, gosto de chamar a atenção mais uma vez para o que talvez seja a mais significativa intuição de Bazin sobre o meio que ele tanto amava: o cinema, ele pressentia, era algo congenitamente impuro. Nenhuma tentativa de purificá-lo poderia dar certo — nem a dos dadaístas nos anos 20, nem a dos letristas em sua própria época, nem o movimento do Cinema Verdade nos anos 60, nem a vanguarda política que, depois de1968,acompanhou pari passu a troca da guarda nos Cahiers du Cinéma.

De fato, os Cahiers dos primeiros anos procuraram a pureza apegando-se à noção sartreana de “autenticidade”que propõe, de um lado, o indivíduo como autor de sua própria vida e, de outro, os escritores e cineastas como aqueles que autenticam sua obra através do estilo. Mesmo que esse recurso tenha servido para recuperar um bom número de filmes típicos da linha de produção comum dos grandes estúdios que, de outra forma, teriam sido deixados de lado, a noção de autoria trouxe consigo a aura do elitismo que emanava dos cineclubes franceses do pós-guerra e dos festivais, em que os autores eram apresentados e homenageados como indivíduos com forte personalidade (invariavelmente masculina) que produziam uma arte capaz de transcender suas condições de produção e recepção. Os críticos dos Cahiers comprometeram-se a corrigir a atenção dispersa do público dos primeiros anos através de uma revisão reverente de filmes que, em alguns casos, foram tratados como objetos de culto, abrigo dos valores autenticamente espirituais a eles atribuídos por seus realizadores. Como veremos, esta atitude diante do cinema continua a ser alimentada ainda hoje na França, embora de um modo contido e sofisticado.

Costuma-se esquecer que Bazin foi uma pedra no caminho dessa política, de cujo vocabulário suspeitava3. Quando citava um autor era para associá-lo, frequentemente, a um gênero, uma tendência nacional ou um movimento social. Quando se entregava aos excessos da autoria existencial, como em seu ensaio “Le journal d'un curé de campagne e a estilística de Roberto Bresson”, Bazin multiplicava os nomes dos autores. Recorde-se esta notável frase daquela ainda mais notável análise: “O som de um limpador de para-brisa contra uma página de Diderot era o que bastava para produzir um diálogo racineano”4. Bazin enfrentava corajosamente a questão da adaptação e da tradução com todos os envolvimentos econômicos e ideológicos que essas palavras implicam. Nessa ecologia cultural o autor sem dúvida representava o papel mais destacado; mesmo assim, era tratado como uma função no interior de um sistema de forças. Imobilizar a análise em cima do autor, acusação lançada por Bazin contra seus amigos nos Cahiers, era paralisar a reflexão sobre o cinema5. Era fetichizar uma imaginária pureza do espírito ou do âmago do ser existente por trás das imagens de um filme. Bazin,com sua preferência por um cinema impuro, pelo hibridismo e pelas excentricidades, teria salivado diante do sumário deste livro (*Referência a Film theory goes to the movies. New York,Routledge,1993, livro em que este artigo de Dudley Andrew foi inicialmente publicado) e do cinema pós-moderno em geral. É que, apesar de seu engajamento no humanismo total de Rossellini e Renoir, ninguém era mais hábil do que ele quando se tratava de deslindar as múltiplas tramas embutidas em qualquer experiência fílmica. O autor pode ter sido fundamental para ele, mas apenas como mais um nó na corda da tecnologia, da linguagem cinematográfica, do gênero, da precedência cultural e assim por diante, um nó que nas últimas décadas se tornou cada vez mais apertado.

O estruturalismo surgiu para estudar sistematicamente o nó textual e para eliminar a busca de suas fontes humanas. Só a linguagem poderia receber o crédito pela autoria dessas configurações linguísticas que chamamos texto. Peter Wollen discutiu Hawks e Ford não enquanto homens complexos com complexas visões de mundo, mas como designações nominais de certas regularidades verificáveis na organização textual, embora na primeira edição (1969) de Signs and meaning in the cinema ele ainda se sentisse obrigado a listar seu panteão dos melhores autores, antepondo-o àquele elaborado por Andrew Sarris. Da segunda edição (1972), banhada de Foucault, ele retirou aquele retrógrado apêndice. Mesmo assim, o estruturalismo de Wollen (que ele compara à meteorologia e, implicitamente, à química) abria espaço para o indivíduo como "catalisador”, isto é, como um elemento, em si mesmo inócuo, com potencial para desencadear uma reação complexa quando introduzido na mistura certa de outros elementos6. Esta analogia cientificista não impediu Wollen de proclamar o primado da interpretação, da “leitura dos códigos”,e de admitir que alguns filmes nada revelam quando lidos profundamente, enquanto outros (os grandes filmes?) recompensam essa leitura com um sentido suplementar. O defensor da tese da autoria existente em Wollen era sustentado por essa crença na importância de localizar, na confusa e contraditória atividade dos textos, aquelas estruturas que, submetidas à análise,invariavelmente se precipitam quando se sabe que um determinado catalisador foi utilizado. Essas estruturas são chamadas de “Von Sternberg”, “Fuller”,“Cukor” e assim por diante. Isolar o signo do autor no interior dos ruídos do texto assumia para Wollen uma função estratégica por permitir que a análise ulterior identificasse outros signos — outros códigos — que contribuem para a (des)organização textual. Os críticos podem começar apreciando as intenções e realizações de um indivíduo isolado, mas a análise estrutural reiterada deveria levá-los a distinguir inúmeros outros fatores (códigos de gênero, de estúdio,técnicos, culturais) que sustentam ou, mais frequentemente, rivalizam com os do diretor. A vibração do texto, sua fertilidade como sítio para uma leitura produtiva, sobrevivem à vibração ilusória de um gênio postado atrás ou antes do texto. 

As duas edições do importante livro de Wollen — a primeira relutantemente autorística, a segunda foucaultiana — permanecem como marco na curta trilha dos estudos acadêmicos sobre o cinema, trilha que, como se sabe, rapidamente desemboca na psicanálise, na crítica ideológica e no estudo do público na cultura popular. Seria possível dizer que esta é mais uma cansativa cantilena das modas acadêmicas, não fosse pelo fato de que questões idênticas (a condição do autor, a disciplina do sistema, a competicão com o texto e a competição no interior do público) podem ser encontradas no mundo real das arenas culturais. Com a derrocada do presunçoso sistema dos grandes estúdios, os filmes americanos juntaram-se aos  filmes dos outros cinemas nacionais na exibição das tensões implicadas por sua produção e na ansiedade com que são aguardados. É possível monitorar os sistemas cinematográficos e sua derrocada mundial no final dos anos 60. Vejamos o caso do Japão em 1968 quando o notório affair Seijun Suzuki encenou um drama misturando negócios e expressividade com cores tão fortes como numa peça Kabuki7

Quando um cineclube de Tóquio manifestou a intenção de fazer uma retrospectiva com a maioria dos 40 filmes B de Suzuki, o estúdio dele, a Nikkatsu, retirou as cópias de circulação e ostensivamente demitiu o diretor por produzir filmes incompreensíveis. Como mostrou o processo judicial que se seguiu, estava em jogo o direito do estúdio de formatar o apelo de seus produtos. A acolhida de um público elitista que Suzuki receberia com a retrospectiva minava o fluxo controlado de imagens da indústria cultural. 

Nos anos que se seguiram ao litígio judicial, o estúdio viu-se recompensado com a diminuição do substancial peso cultural que os cineclubes haviam conseguido ao final da década de 60. Os cineclubes são hoje tepidamente lembrados como vestígios de uma época mais inocente, mais humana. Por outro lado, os cineclubes revelaram-se a vanguarda de uma insurreição generalizada na medida em que abriram brechas nas muralhas dos grandes estúdios ao afirmarem seus direitos de utilizar os filmes como bem entendessem. A fragmentação da audiência de massa em subgrupos isolados tornou-se a história da cultura global a partir de 1980 e também do pós-modernismo, com suas conhecidas conseqüências para as intenções de autors, agentes e, mesmo, governos. 

O caso de Suzuki mostra-se relevante sobretudo quando se pensa na natureza ostensivamente apolítica de seus filmes. A Nikkatsu estava menos preocupada com o poder dos autores e de seus textos renegados do que com o poder do público para subverter o sentido dos textos e romper o sistema que a Nikkatsu considerava sob controle. Esta mesma mudança tornou-se evidente no Ocidente na década de 70, com o rompimento dos cânones verificado durante o despertar do feminismo e do multiculturalismo; embora muitos filmes e alguns novos autores fossem admitidos no panteão, essa ascensão deu-se com um valor deflacionado. É que os mais avançados críticos culturais desfizeram-se de seus investimentos em autores e mesmo em textos, para comprar maciçamente as ações do público e das culturas por eles compreendidas8

Mas a história de Suzuki continua; hoje ele é uma força autêntica no cinema japonês. Números especiais de revistas especializadas lhe têm sido dedicados. Embora não mais rode três filmes por ano, porém mais ou menos um filme a cada três anos, cada um deles é uma sensação. Inversamente, a Nikkatsu está paralisada. O autor sobreviveu à indústria ou, melhor, adaptou-se a um público fragmentado, do qual uma pequena porém apaixonada parcela pagará para ver, e rever repetidamente, qualquer coisa que traga a assinatura de Suzuki.

Em resumo, a tese da autoria está longe de ter morrido9. Como diz Timothy Corrigan, ela pode “de fato estar bem mais viva hoje do que em qualquer outro momento da história do cinema [...]. No interior do comércio da cultura contemporânea [a tese da autoria] tornou-se, enquanto foco de produção e interpretação, mais criticamente central e ao mesmo tempo amplamente diferente do que um dia foi. Desde o início dos anos 70, o condicionamento comercial desta figura foi bem sucedido na operação de esvaziá-la da maior parte de seu poder de expressividade e de coerência textual; ao mesmo tempo,este condicionamento comercial despertou uma atenção renovada sobre as pressões estratificadas da idéia de autoria como sendo uma agência que estabelece diferentes modos de identificação com seus públicos”10.

Que aconteceu desde o começo dos anos 70, desde o livro de Wollen e do caso Suzuki, para provocar o aparecimento destes diferentes modos de identificação? Entre outros fatores, o incessante fluxo de imagens televisuais corroeu a estabilidade dos textos e atuou como um ácido sobre os últimos sinais de seus autores enquanto autoridades que pairam acima da experiência de suas obras e que exercem uma pressão moral sobre a interpretação delas. Os autores podem existir — mas se existem é graças aos espectadores. Os críticos sentem hoje a necessidade de preocupar-se com o ambiente cultural em cujo interior uma variada cidadania se movimenta, se diverte e manobra com vistas a certas posições. Eles têm de preocupar-se com Tóquio, Londres, São Paulo e Roma, onde, fora de controle, uma superabundância de imagens é recebida compulsoriamente pela miríade de grupos que perambulam pela ruas com objetivos opostos ou sem qualquer objetivo. 

Críticos como Corrigan, que se mostram fascinados ou atônitos com as velozes mudanças culturais registradas desde o Vietnã, reconhecem a importância do autor na proliferação dos textos e significados mas tratam esse autor não como um indivíduo com uma certa visão de mundo ou um determinado programa mas como um nome disperso, falso, de distribuição de benesses no mercado internacional de imagens, um mercado que cada vez mais negocia na “bolsa de futuros”. Esta redução do autor à condição de um simples relé no fluxo econômico de imagens tem o efeito de sobrepor representações à realidade,invertendo o modelo tradicional. “Começar a escrever”, propôs Edward Said,“significa reorientar a energia humana do 'mundo' para a página”11. Se alguma vez o cinema mereceu ser considerado uma página na qual algo começa a ser escrito, que estamos no meio de um “cinema sem paredes” que se derrama sobre o mundo. Hoje os autores não se afastam do mundo, se é que um dia fizeram isso, mas voltam-se para o mundo, e o mundo, se ainda nos atrevemos a falar dele, é uma salada de possibilidades em que as imagens e as representações estão incluídas como elementos da primeira classe. Há não muito tempo, as pessoas se refeririam a um “mundo” de Fellini ou de Îngmar Bergman ou de John Ford, tematicamente inter-relacionados em uma certa estrutura,a ser projetado em uma tela em algum lugar ao lado da vida cotidiana da qual aqueles elementos foram colhidos. Mas haveria sentido em falar-se hoje num “mundo”de Spike Lee, uma vez que ele pretende que seu “mundo” deva imiscuir-se em nosso mundo? Aparecendo em programas de entrevistas na TV e em comerciais de tênis Nike, Lee é uma figura familiar instalada em nossas salas de estar, do mesmo confortavelmente em seus filmes. De fato, seus filmes são convidados a entrar em nossas salas de estar através do vídeo-cassette. Isto é muito mais que uma questão de novas tecnologias de distribuição: é algo relacionado com o reconhecimento de que natureza e cultura, bem como a representação de ambas, são cada vez mais percebidas de um modo homogêneo. Será que os turistas de hoje fazem distinção entre uma viagem a Epcot Center e uma visita à Flórida?

A comercialização global da cultura corrobora o ponto de vista de Corrigan, com o dinheiro funcionando como o grande fator de igualdade. Não apenas o dinheiro iguala Spike Lee, Ridley Scott e Robert Bresson nas locadoras de vídeo como coloca mesmo o mais intencional dos autores (Coppola é o exemplo bem escolhido por Corrigan) dentro de um sistema que é maior que ele, um sistema que rápida e cruelmente comercializa suas ações no mercado à sua própria maneira. Críticos de cinema americanos como Corrigan, que um dia olharam na direção da Europa em busca de modelos de cinema e de crítica, agora terão (eles e o país a que pertencem) de prestar uma atenção cada vez maior ao Japão e àquilo que o Japão representa na economia e na cultura. É que o Japão significa neon e simulacros e não textos e autores, apesar da proliferação da imprensa naquele país. No pós-guerra,o autor era o elo mais forte entre o cinema e a função literária; era o autor que provava que o cinema podia ser uma arte, uma expressão do pensamento e do sentimento pessoal em oposição à exterioridade do espetáculo e, talvez, também em oposição ao apelo universal da maioria dos filmes. A menção à literatura traz à mente um cinema que é visto na privacidade, reflexivamente; um cinema a respeito do qual se medita e se discute e do que se podem extrair ideias; em suma, um cinema para ser lido mais que consumido12.

Será que mesmo os livros ainda são lidos desse modo? Pensar sobre o autor no Japão é pensar nostalgicamente, pensar em Soseki e Tanizaki e no refinado mundo de sensibilidades que representavam e para o qual contribuíram. No entanto, em Jinbocho — bairro de Tóquio com a maior concentração de livrarias do mundo — são os periódicos e as revistas de histórias em quadrinhos (mangá) que predominam nas estantes. Milhares de leitores de livraria passam de uma estante a outra, folheando páginas como num fliperama. Deslizam distraidamente na direção dos caixas onde sacam suas carteiras e trocam suas notas de 1000 ienes, com retratos de Soseki, por livros ilustrados de robôs humanizados ou, mais freqüentemente, robóticas garotas núbeis (desenhadas ou fotografadas, pouco importa). Um eminente crítico da literatura japonesa termina seu último livro com uma reflexão sobre o pós-analfabetismo em meio a uma cultura da palavra impressa cada vez mais florescente13. Os livros japoneses são projetados para serem descartáveis. Naquele país, o autor é recrutado por um comércio das trocas imediatas no qual, mesmo na literatura ensaística, as superfícies das ideias são escaneadas com a rapidez de uma linha desenhada14.

O cinema é parte da economia da mídia que reduziu o autor a um signo — mais precisamente, a uma assinatura. Mas o cinema também é vítima dessa economia, com suas imagens cuidadosamente elaboradas perdendo-se nas (e para as) imagens eletrônicas que jorram como água corrente ou como esgoto dos 12, ou dos 34, ou das centenas de canais  de TV ao redor do mundo. Observados a partir de Tóquio, a literatura e o cinema têm em comum a fútil e patética luta preservação do valor do pensamento, das emoções, da arte, em um mundo que se importa cada vez menos com isso.

Mas voltemos à Europa onde tais assuntos aparentemente ainda importam e são discutidos. É que o autor obteve novamente foros de respeitabilidade acadêmica, como o livro de Corrigan demonstrou, e o fez graças a foucaultianos heréticos como Edward Said e Gilles Deleuze. A sensibilidade de Said para as micro-estruturas do poder intitulado Beginnings e de manter a crença segundo a qual o humanismo crítico (isto é, intervenções estratégicas feitas por individuos) pode alterar formações massivas e ideologicamente dispersas como a que ele denominou de "orientalismo". "Começar" um projeto não é dar origem a uma obra, é antes desviar um fluxo de seu sentido inicial, conectar-se numa outra direção. Este senso restrito da inovação retém o poder do esforço e da crítica individual ao mesmo tempo que reconhece o poder maior do sistema social em cujo interior qualquer coisa que faz diferença deve começar. Este modo de entender as coisas é creditado a figuras como Alexander Kluge e Fernando Solanas. Por que não aplicá-lo também, de algum modo, a Ridley Scott, cuja tentativa de conectar-se para fora do filme repodução "pé na estrada" com Thelma e Lousie (1991) parece mais heróica ainda devido ao colapso nas perseguição ao final do filme?15 

Menos moderno do que Said, Gilles Deleuze retorna a Nietzsche e em particular a Bergson para insistir no “novo”, na “evolução criativa”. Os influentes livros de Deleuze sobre o cinema dependem dos autores, da expansão muscular que promoveram da representação cinematográfica e, de fato, daquilo que outrora chamávamos de suas “visões de mundo”. Numa sintomática passagem ele localiza nos filmes de Akira Kurosawa uma configuração de movimentos de câmera que funciona como doublé de um sinal gráfico fictício — um kanji, ou ideograma chinês —, representando o próprio nome de Kurosawa16. Sendo sempre um signo muito especial e problemático, a assinatura do autor é uma marca na superfície do texto que indica sua origem. A assinatura contém em si — como num hipertexto — uma autêntica quarta dimensão, o processo temporal que deu origem ao texto17. A assinatura ancora a imagem fílmica, por intermédio da fina linha desenhada pela câmera ou pelo pincel, a um recife de valores submerso. É vista nos créditos do filme, no aparecimento literal de seus autores no meio dos filmes, como no caso de Hitchcock e, depois dele, de Truffaut,Godard e Rohmer.

Um autor pode estar cercado pelas imagens pelas quais é julgado responsável, mesmo que não direcione a leitura delas. Esta seria a opinião de Deleuze a respeito de Kurosawa e Hitchcock, cujo uso da figura da espiral em Um corpo que cai (Vertigo) Deleuze também identifica como uma assinatura gráfica. O espectador pode usar essas figuras como bem entender porque, para Deleuze, de todo modo ninguém “lê” um filme mas, sim, subsiste no interior de sua duração e de seu fluxo, arrastado por ele mas não na direção de um destino predeterminado. O autor marca a presença da temporalidade e da criatividade no texto, incluindo a criatividade do pensamento emergente que é contribuição do espectador.

A posição resoluta de Deleuze contra a semiologia do cinema pode ser a responsável pela redefinição francesa do autor, não mais em termos da literatura mas da pintura. Vários dos mais importantes filmes franceses recentes tomam como tema o momento criativo do artista. La belle noiseuse, de Jacques Rivette, e Van Gogh, de Maurice Pialat, confirmam a relação entre cinema e pintura em que teóricos como Jacques Aumont e Raymond Bellour vêm insistindo, particularmente com relação às obras recentes de Godard18. Godard sempre entendeu que a imagem do autor, como a de um escritor diante da página em branco, deve ser substituída pela imagem mais frustrante da página preenchida por uma linguagem cuja rede inevitavelmente cerca e constrange o impulso expressivo que empurra a caneta sobre o papel. Mas a imagem do pintor diante de uma tela em branco contém a ilusão da pureza pré-lingüística, aquele momento em que a representação e a percepção interagem de um modo potencialmente virginal. Passion (1982) tem como tema a originalidade; Je vous salue Marie (1984) reflete sobre a concepção imaculada através da simulação de uma livre percepção da natureza. Seria possível considerar Godard, Rivette e mesmo Pialat como casos especiais, mas quando um sucesso popular como Tous les matins du monde (1991), com Gérard Depardieu, recorre à tranqüilidade de um compositor barroco antes do ato de compor, é preciso reconhecer que existe aí uma notável bofetada na cara dos sucessos massivos do cinema de ação americano (Exterminador do futuro 2, 1991) e das simulações do pós-modernismo internacional (Nikita, 1991) que constituem o pano de fundo da cultura contemporânea19.

Em suas teorias e em seus filmes,os franceses nos lembram que, mesmo hoje, o autor não é, propriamente falando, alguém que usa um sistema linguístico completo mas alguém que funciona como um mecanismo que remete ao silêncio anterior à linguagem e que põe para fora, nas dores do parto, uma expressão formatada para o pensamento e a emoção. Ler um poema ou um romance significa participar outra vez dessa luta pela expressão, aquilo que hoje é chamado de écriture, a busca — através das palavras — do estado de mudez20. A écriture (e, paradoxalmente, estes “filmes de pintura") envolve temporalidade e interioridade21,enquanto o mundo midiático da pós-modernidade é feito de pura espacialidade e exterioridade, um mundo da exibição — do espetáculo — do social.

A palavra écriture conduz inevitavelmente minha atenção para Marguerite Duras. Le camion (1977) começa com o plano de um cruzamento. Quando um caminhão (o caminhão do título) entra em foco, os créditos começam a identificar os responsáveis por aquele texto, incluindo Marguerite Duras como autora e diretora. Mas qual é e onde está o texto daqueles arrolados como responsáveis pelo filme? Perguntamo-nos isto quando os créditos são interrompidos por um plano da própria Duras lendo para Gérard Depardieu um texto escrito. Quando o caminhão volta junto com os créditos restantes, somos levados a pensar que este filme é a exemplificação de uma leitura que, intermitentemente, nos permite presenciar. Não se trata de uma obra literária que é traduzida pelo cinema. O cinema de fato imagina um texto literário que está simultaneamente em construção. O autor está presente no texto na qualidade de efeito cinematográfico.

Por cima desta fértil imagem do autor no texto, no entanto, temos de colocar uma segunda imagem, mais recente e bem mais normal: na capa de uma popular revista mensal, uma foto em preto e branco de uma atraente adolescente, com chapéu ao estilo dos anos 30, com uma legenda convidando o leitor a penetrar na “verdadeira vida de Marguerite Duras"22. No meio de uma colagem biográfica, uma página crucial é dedicada à recente adaptação para o cinema de seu mais popular romance, O amante (1992). Ficamos sabendo que Duras escreveu uma segunda versão de O amante a pedido de seu produtor Claude Berri, compondo assim um romance parasita, O amante da China do Norte, que faz referências a sua possível utilização para o cinema. O segundo capítulo começa assim: “É um livro, é um filme, é a noite"23. Produzindo mais "literatura", o que esta adaptação fez foi levar Duras a uma disputa com Berri e com o diretor do filme, Jean-Jacques Annaud,uma disputa cuja notoriedade tornou-se, mesmo agora, parte integrante da promoção do filme que Duras repudia. No entanto, o nome de Duras e sua fotografia de adolescente são parte da publicidade do filme e, presumivelmente, do prazer experimentado pelo público enquanto espera na fila para assistir aquilo que é, sob todos os aspectos, um artefato híbrido.

O amante (enquanto literatura, texto, texto suplementar hibridismo com que comecei. O amante exige Duras e exige a ausência de Duras; este é o paradoxo da autoria24. Queremos acreditar em Duras, embora poucos autores desapareçam mais misteriosamente que ela por trás de uma cortina de palavras. Este é um combate da fé em um mundo ateu, pois o autor certamente é um análogo de Deus, o criador e fonte do mundo. Com o desaparecimento de Deus vemo-nos a sós com o corpo do mundo; portanto, com o desaparecimento do autor, encontramo-nos a sós com o corpo brincar com esse corpo da forma como bem entendermos, uma vez que o texto existe e os leitores existem, enquanto o autor é um efeito de ambos, um efeito, além do mais, produzido pela distância e pela invisibilidade. Entretanto, apesar de Nietzsche e da liberdade de ação por ele anunciada, a palavra “autor”, e os sinais ocasionais deixados por aquilo que esta palavra possa eventualmente assinalar, podem engrossar um texto com a duração, com o passado de seu advento e com o futuro de nossa existência ao lado dele.

Notas:

1. Depuração refere-se ao período na França imediatamente após a II Guerra Mundial quando certas personalidades do mundo do cinema foram proibidas temporariamente de exercer sua profissão por suspeita de colaboração com os nazistas.Henri-Georges Clouzot e Artlety foram os nomes mais famosos que ficaram fora de circulação durante algum tempo.

2. Hors Cadre 8, primavera de 1990; Naremore, James. “Autorship and the cultural politics of film criticism”,in Film Quarterly, n°44, outono de 1990; Corrigan, Timothy. A cinema without walls. New Brunswick, Rutgers Univ. Press, 1991. Naturalmente,nenhum dos autores destes textos quer voltar ao paradigma da crítica dos anos 50 e 60; todos complicam a questão,mas todos a discutem. Naremore o faz timidamente,um pouco envergonhado por levantá-la nestes dias tão sofisticados. Mais corajosamente, Corrigan concede ao autor um papel no novo sistema de produção textual que atende pelo nome de pós-modernismo. Muitos dos colaboradores de Hors Cadre alegremente retornam ao conceito, senão à carne e ao sangue do autor (visto agora como dividido ou ausente ou construído ou como mera assinatura) em seus esforços de investigar cada vez mais a fundo este peculiar - e híbrido, eu diria - meio conhecido pelo nome de cinema.

3. Quem nunca esquece isto é Jim Hillier cuja coleção Cahiers du Cinéma: The 1950s. Cambridge, Mass., Harvard Univ. Press, 1988, é indispensável para a história do autorismo.

4. Bazin, André. What is cinema? trad. por Hugh Gray, vol.1,Berkeley, Univ. of California, 1968,p.130.

5. Bazin, André. “La politique des auteurs”, in Hillier. Cahiers du Cinéma:The 1950s. Op.cit.

6. Wollen,Peter. Signs and meaning in the cinema. Londres, Secker and Warburg,1972,p. 168.

7. Recorri, aqui, ao artigo inédito “Spectating in the postmodern:the Suzuki Seijun mondai”, de Aaron Gerow, 1991.

8. Valores concorrentes complicam as situações. È o que acontece quando cineastas como Helke Sander e Tomás Gutiérrez Alea desprezam em alto e bom som o cinema como "arte" no sentido tradicional e, mesmo assim, são canonizados como autores que criaram novas opções para a produção e a recepção sociais do cinema. 

 9. Naremore declarou morto o autorismo de seu ensaio no Film quarterly, acrescentando que estavam igualmente encerrados os debates (o dele e o meu, suponho) sobre o assunto.

10. Corrigan, Timothy. A cinema without walls. Op. cit., p.135.11. Said, Edward. Beginnings. Baltimore,The Johns Hopkins Univ.Press,1975,p.24. 

11. Said, Edward, Beginnings, Baltimore, The John Hopkins Univ. Press. 1975, p.24.

12. Eric Rohmer relaciona o ato de assistir filmes ao de ler livros numa biblioteca em seu The taste for beauty. Cambdrige Univ. Press, 1989,p.157.

13. Miyoshi,Maseo. Off center:power and cultural relations between Japan and the United States. Cambdrige Univ. Press, 1991, p. 217.

14. Masao Miyoshi observa que o ensaio acadêmico está sendo cada vez mais substituído pela transcrição de mesas-redondas, o que satisfaria a necessidade de um rápido resumo das posições, da ilusão da imediaticidade e do evento mais que da reflexão e, claro, da ilusão do contato com os autores da esfera acadêmica.

15. Ao que tudo indica, uma fatia desproporcional do orçamento de 16 milhões de dólares foi para o quarto final do filme, junto com as audaciosas, mas familiares, cenas de helicóptero. Nosso interesse pelas personagens femininas, e pelo modo como são percebidas, é arrastado na enxurrada da perseguição e remasculinizado. Mesmo assim,o próprio título, Thelma e Louise, dá uma consciência ao filme “pé-na-estrada"em que se transforma. Talvez este gênero sempre tenha trazido embutida sua própria crítica, embora raramente de modo tão visível.

16.Gilles Deleuze.Cinema I: the movement-image.Minneapolis, Univ.of Minnesota Press,1989,p.21.

17. Gandelman, V.Cl. e Greene, N."Fétichisme, signature, cinéma” in Hors Cadre 8, Primavera de 1990, pp.147-162.18. Aumont,Jacques.L'oeil interminable. Paris, Séguir,1989, L'image,P aris, F. Nathan, 1990; Bellour, Raymond. Cinéma et peinture: approaches. Paris, PUF,1990; L'entre-image. Paris, 1990.

18. No texto original essa não está disponível.

19. Pierre Corneu, diretor de Tous les matins du monde, não hesita em discutir Crônica de Anne Magdalena Bach, de Straub/Huillet,ao avaliar sua própria realização no Cahiers du Cinéma n° 451,janeiro de 1992. Tous les matins du monde fez mais dinheiro do que qualquer outro filme em Paris nas primeiras semanas de 1992. Embora tenham sido os franceses a levar mais longe a noção do artista— criador, um interesse internacional por este assunto pode ser observado em filmes recentes como Angels at my table (Champions, 1991), Vicent e Theo (Altman, 1990), Prospero's books (Greenaway, 1991) e assim por diante.

20. Le Bot, Marc. “L'auteur anonyme ou l'etat d'imposteur”,in Hors Cadre 8, primavera de 1990, p.19.

21. Paradoxal porque o termo “écriture”, costumeiro no cinema desde 1950, foi de início utilizado sob o espírito da literatura. Hoje esses filmes — especificamente os de Rivette e Godard — , que assumem a reivindicação da linguagem e da expressão, o fazem cada vez mais sob o espírito da pintura e da história da arte. Este seria o argumento de Raymond Bellour, e concordo com ele.

22. Lire 193, outubro de 1991.

23. Duras, Marguerite. L'amant de la Chine du Nord. Paris,Gallimard, 1991, p.17.

24. O fenômeno é notável a ponto de ter recebido menção (com foto!) em Newsweek. 17 de fevereiro, p.8
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Autor: Dudley Andrew — autor de As principais teorias do cinema: uma introdução.

Tradução Teixeira Coelho.

Fonte: Texto original sem referências de identificação da publicação (p.63 a p.68)


quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

O conceito de cultura e o estudo de sociedades complexas: Uma perspectiva antropológica.

A constituição da Antropologia enquanto campo de saber está profundamente associada a noção de Cultura. Esta disciplina, desde seu inicio em fins do século XIX, se apropria do termo "cultura" e o erige em conceito totêmico, símbolo distintivo. Difundindo-se pelo campo intelectual moderno, a noção de Cultura carrega definitivamente a marca antropológica.

"Cultura, ou civilização... é este todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, leis, moral, costumes, e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade" (Tylor 1871: 1). A famosa definição de Edward Tylor, por inclusiva e confusa que fosse, abriu caminho a toda uma nova problemática. Depois dela, muita coisa se passou, na Antropologia, em volta deste conceito: escolas inteiras organizaram-se a partir de ênfases, alternativas, definições de "cultura". O termo entrou em pares conceituais variados: cultura/sociedade, cultura/personalidade, sem esquecermos o tradicional cultura/civilização, presente na citação de Tylor. Kroeber e Kluckhon, em 1952, transcreveram, classificaram e comentaram 164 definições diferentes de "cultura": descritivas, normativas, psicológicas, estruturais, históricas,etc.(Kroeber e Kluckhon 1952). Esta espantosa proliferação indica o papel estratégico do conceito, que, neste sentido, vai integrar o acervo cultural do Ocidente moderno: ele já foi comparado a segunda lei da termodinâmica, ao principio da seleção natural, a motivação inconsciente do comportamento (Geertz 1973) - tópicos-chave da mitologia "culta" do século XX. 

Com Tylor, a história do termo "cultura" passa a uma nova fase. Até então, seu foco era predominantemente uma reflexão sobre as descontinuidades sociais e nacionais dentro da Europa. A Kultun foi um tema caro ao romantismo alemão, inicialmente instrumento da burguesia contra uma aristocracia influenciada pela corte francesa (identificada à Zivilisierheit, a civilização como polidez superficial, cortesã); mais tarde veio a definir o espírito alemão, símbolo no esforço da unificação nacional (Elias 1969). A ideia de "civilização", dominante na França e Inglaterra, compreendia desde os modos das classes superiores até as conquistas tecnológicas do Ocidente. Na Alemanha, "civilização" veio indicar as realizações materiais de um povo; "cultura", por outro lado, referia-se aos aspectos espirituais de uma comunidade. Enquanto a primeira noção traz em si - em seu uso francês - a ideia de progresso, a outra voltava-se para a tradição; aquela inseria-se no expansionismo colonial (a missão civilizatória do homem branco), esta marcava a singularidade de cada povo. E, com efeito, a noção de Civilização permanece tingida pelo sentimento de uma esfecificidade do Ocidente como um todo, de uma autoconsciência satisfeita; a "cultura", por sua vez, foi assumida pela Antropologia, discurso ocidental sobre a alteridade.

Note-se, contudo, na definição de Tylor, a equação "cultura — civilização"; aqui, esta distinção deixa de fazer sentido; agora trata-se de definir conceitos de valor universal. Mas, se o conceito de Cultura veio a predominar sobre "civilização", é porque originalmente ele se adequava melhor a proposta da Antropologia. Enquanto a ideia de civilização pressupõe um aspecto territorial dado, uma continuidade espacial (não por acaso surge em sociedades há muito unificadas), a idéia de cultura sugere uma ligação espiritual entre homens, mesmo separados por fronteiras politico-geográficas. E esta ligação é inescapável; consciente ou inconscientemente, põe o ser humano individual em contato com um universo social de valores. Assim, o homem acede a sua essência "enquanto membro da sociedade" — como diz Tylor. 

Estes significados marcaram o uso da noção de Cultura dentro da Antropologia, ciência que se desenvolve como subproduto da expansão colonial européia. Se originalmente a idéia de Cultura era resultado de um esforço de conscientização de diferenças dentro da Civilizacão Ocidental, a diferença imediata, visível, que se estabelecia no confronto com sociedades exóticas, africanas, asiáticas, americanas, propunha um enigma para a consciência ocidental. Este enigma, em seu sentido profundo, revelava a finitude, a relatividade da civilização européia."Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais" — sentencia Paul Valéry. 

Apesar das teorias racistas, a crença da unidade fundamental do gênero humano ganhava solidez no final do século passado. A biologia darwinista foi um dos principais instrumentos de legitimação desta crença; é ela que redefine as teorias evolucionistas a partir do postulado da unidade biológica do homo sapiens; e o evolucionismo, a primeira teoria propriamente antropológica da diferença cultural, deve ser julgado como discurso que, embora terminando por sonegar a especificidade das culturas não-ocidentais, fundava-se neste postulado.

Uma vez aceita — não sem dificuldades — a crença no monogenismo da espécie, surgia automaticamente um novo problema, que vai constituir a Antropologia: como explicar a evidência cegante da enorme diversidade de modos de vida de todos estes povos, e, sobretudo, a diferença entre nós, "civilizados", e os "outros"? O universalismo da perspectiva européia (fenômemo inédito na historia das idéias) tem de enfrentar este problema; e o faz de várias maneiras.

Diversidade Cultural

Deve-se observar que a ciência da diversidade cultural da humanidade não remontava, evidentemente, apenas ao século XIX; os canibais de Montaigne já tinham provocado um forte impacto no pensamento europeu. Mas, por que a Antropologia — discurso que associa o postulado da unidade biológica ao da diversidade cultural — só vem se constituir recentemente? Questão inevitável, embora talvez irrespondivel. Cabe notar, contudo, que a consciência ocidental de Outro se insere historicamente em contextos variáveis. A gênese da Antropologia se faz em um momento em que a relação com as colonias muda de sentido — tratava-se agora de transformar as populações coloniais, adequá-las ao sistema capitalista, não apenas como ocupantes indesejáveis de territorio a ser predado, ou com fonte de mão-de-obra escrava, mas como participantes em um grande mercado internacional, aonde tambem serão consumidores, tendo que, mal ou bem, adotar valores de uma cultura ocidental. A unidade do gênero humano, assim, nāo deixa-va de encobrir, sob a capa piedosa do cristianismo ou do cientificismo, uma necessidade histórica da expansão colonial.

Com efeito, o primeiro momento da Antropologia foi o de um esforço de redução da diferença cultural. Se os homens eram iguais, e suas diferenças "apenas" culturais, é porque na verdade tais diferenças mascaravam uma unidade básica. As variedades não passavam de etapas distintas de um só processo evolutivo, liderado pela cultura ocidental. A percepção de uma variedade sincrônica passava a ser uma aparência, que ocultava uma unidade diacrônica mais básica. A história da cultura — das culturas — era unificada, tornando-se epifenômeno da história da Humanidade; assim, a inserção forçada dos povos colonizados na história do ocidente era duplicada por uma reflexão teorica — o evolucionismo — que discorria sobre a naturalidade desta inserção. Afinal, o fardo do homem branco era educar seus "contemporâneos primitivos", acelerar seu crescimento, que necessariamente iria culminar em um estado idêntico ao já atingido pela civilização do Ocidente. A idéia da civilização, assim, perde seu sentido de processo, e passa a definir um estado — a sociedade ocidental — que deve ser atingido pelos ainda não-civilizados. 

Mas o destino da Antropologia não era o de serva demasiado fiel do colonialismo; seu movimento histórico pode ser resumido na idéia de uma crescente percepção da especificidade das diferenças culturais em si; o que melhor caracteriza a posição antropológica é o esforço de reconstruir os critérios internos que cada cultura utiliza para sua auto-reflexão; não se trata agora de julgar os aborigines australianos por sua (altamente discutivel) pobreza tecnológica, e assim colocá-los numa hipotética “idade da pedra" comum a toda a Humanidade; mas sim de verificar em que domínios a(s) sociedades australianas (ou sul-americanas etc) atingiram maior elaboração. 

A abordagem da diferença cultural como um dado irredutível — que, no limite, levou a um certo relativismo quase solipsista, mas saudável na medida em que se opunha a pulsão devoradora do Ocidente — ganhou força a partir da entrada da Antropologia em seu estado experimental: a pesquisa etnográfica detalhada, paciente, muito contribuiu para a falência de esquemas aprioristicos de interpretação das culturas humanas como variantes de um mesmo movimento universal. A síntese, agora, pressupunha a análise; e ainda estamos imersos nesta tentativa de reunir a gigantesca quantidade de informações recolhida pelos antropólogos em todos os pontos do globo. Em certo sentido, e verdade, a Antropologia completou a "devoração" ocidental das diferenças, ao se propor como "tradutora" para o discurso cientifico da multiplicidade vivida de esquemas cognitivos e emocionais que os homens usaram para se pôr no mundo. Mas este canibalismo evita outro pior – a destruição cega, em nome dos beneficios da civi-lização ocidental, de tudo aquilo que é diferente. Assim, com a decadência do evolucionismo ingênuo que a marcou em sua infância, a Antropologia inscreve-se definitivamente no movimentó geral de autoquestionamento da civilização ocidental. O espelho do Outro assola a consciência do século XX. Os movimentos culturais fundamentais que iniciam esta época antropologos o surrealismo, a lingüistica, a psicanálise e o socialismo antropologos estão marcados pela negaçāo dos "centrismos" narcisicos que dominaram o Ocidente. E tais movimentos muito devem a Antropologia, como se pode observar.

O dilema que mencionamos acima — como conciliar a unidade biológica e a diversidade cultural da espécie humana —  tem sido enfrentado, modernamente, pelo consenso sobre a não-operatividade da noção de uma "natureza" humana. O aspecto "instintual" do organismo do homo sapiens, comparado com o dos demais animais superiores, é frouxamente organizado, fornecendo apenas determinações gerais para o comportamento. O essencial inacabamento biológico do ser humano após o nascimento, sua plasticidade e abertura para o mundo (Berger, 1974), levam a conclusão de que a Cultura ergue-se como a instância propriamente humanizadora, que dá estabilidade as reações comportamentais, e funciona como o mecanismo adaptativo básico da espécie. Mas esta estabilização se caracteriza por ser não-determinada universalmente. A humanização do homem se faz de várias maneiras possiveis. A seleção cultural, i.e., particular, das capacidades biologicas a serem desenvolvidas ou inibidas, tudo isto "poderia ser de outro modo" — o domInio da Cultura, como o viu Mauss, é o dominto da modalidade. A humanização do homem se faz sempre através de um modo de vida particular — o homem não se realiza através de uma humanidada abstrata (Lévi-Strauss, 1973).

Tais conclusões podem ser inclusive aplicadas ao clássico problema da origem da Cultura. As discussões mais recentes (Geertz, 1973) apontam a interpenetração histórica entre a evoluçāo final do organismo do homo sapiens e as primeiras aquisições culturais — a mão e a ferramenta se co-determinam. Neste sentido, tanto os aspectos ontogenéticos quanto os filogenéticos do desenvolvimento humano supõem a inseparabilidade de Cultura e Natureza — literalmente, a Cultura faz, e fez, o homem. Evidentemente, como os recentes estudos de etologia animal demonstram (de maneira ainda pouco clara), a variedade dos comportamentos culturais baseia-se em certos mecanismos biológicos. Mas o que distingue o humano é a elaboração particular sobre esta base natural.

Este instrumento de humanização é um instrumento de comunicação. A Cultura tem sido definida como um conjunto complexo de códigos que asseguram a ação coletiva de um grupo (Lévi-Strauss, 1950). A noção de código, que veio marcar profundamente as teorias antropológicas atuais sobre a questão da Cultura, procede da Linguistica —  da revolução de Saussure, que apontou o caráter ao mesmo tempo social, inconsciente e sistematico da linguagem, domínio central da cultura. Claude Lévi-Strauss pode
ser apontado como o antropólogo que elaborou mais detalhadamente esta noção vinda da Lingüistica, mas ela surge na obra de vários cientistas. A noção de cultura como código — conjunto de regras de interpretação da realidade, que permitem a atribuição de sentido ao mundo natural e social — implica fundamentalmente a idéia de sistema. Aqui a Antropologia se levanta contra as tradicionais concepções de Cultura como agregado histórico de "traços", elementos culturais, cuja relação interna não era examinada. Esta tradição encontra sua origem nas escolas difusionistas alemãs, que, diga-se de passagem, apresentavam analogias com a gramática histórica pré-Linguistica.

Tratar a Cultura como sistema significa admitir quo o "todo complexo" de Tylor é um todo coerente, aonde cada "costume", regra, crença ou comportamento faz parte de um conjunto quo dá sentido as partes. Tratá-la como sistema, portanto, significa admitir a racionalidade intrinseca de qualquer cultura — e aqui o evolucionismo redutor perde suas bases. O exame etnológico das culturas não-ocidentais revelou a alta complexidade, sutileza e coerência de práticas tidas como "bárbaras" ou irracionais (um exemplo pode ser o estudo das concepções Azande sobre Bruxaria, por Evans-Pritchard 1937).

Regras Inconscientes

Por outro lado, a concepção da Cultura como sistema levou a tese de que a atividade e o pensamento humanos estão submetidos a regras inconscientes (aqui, Freud, Saussure e a antropologia de Marcel Mauss se encontram); e que, portanto, "Cultura" é menos a manifestação empirica da atividade de um grupo (como a definia Tylor), que o conjunto de principios que subjazem a estas manifestações. Inconsciente, mas social: estas regras não se encontram no aparelho psiquico "natural" de cada individuo, mas definem um sistema que é comum ao grupo. Assim, o homem cada vez mais se vê ligado sem querer à sociedade. O estudo das "classificações primitivas" por Durkheim em Mauss ((1903) 1969) chamou a atenção para a matriz social das formas de percepção e classificação do mundo, um tema que a Antropologia vem desenvolvendo de maneira privilegiada (v.p.ex. Douglas (1966) 1976). 

Estes códigos que vão constituir a Cultura consistem essencialmente em aparelhos simbolicos. A natureza simbólica da Cultura é outro aspecto importante desta noção em Antropologia. A Cultura pode ser concebida como um sistema de simbolos, organizados em diversos subsistemas. Neste sentido, o comportamento humano é percebido como apresentando, para além dos aspectos puramente técnicos ou pragmáticos, um componente simbólico, i.e..expressivo. A noção de cultura como sistema simbólico aponta, ademais, para a natureza social do comportamento: estes símbolos são decodificados a partir de um código comum a um grupo. Desta forma, um dos métodos de identificação das fronteiras de uma cultura particular e o exame da capacidade ou não de um dado símbolo ser decodificado identicamente por dois grupos.

O estudo do simbolismo, assim, tem constituído outra vertente dominante nos estudos de cultura (ver Turner 1967, 1974).

Mas, se a descoberta do caráter sistêmico da cultura foi algo revolucionário, levou por outro lado a certos impasses, que marcam a moderna Antropologia. Em primeiro lugar, como explicar a mudança cultural, se o essencial de uma cultura esta "no" inconsciente, e se o homem só consegue atribuir sentido ao mundo a partir de um sistema - i.e., um código estável de interpretaçāo de símbolos? Em segundo lugar — esta é a questão que nos interessa mais diretamente — como estudar sociedades complexas, i.e., as sociedades onde a divisão do trabalho e o desenvolvimento das forças produtivas levou a uma diversificação interna considerável? Nestas sociedades — habilmente esquecidas pela Antropologia clássica, que estudava pequenas comunidades onde os individuos participavam quase que identicamente de uma única visão de mundo, de uma única matriz cultural —, certos elementos levavam à constatação da existência de "uma" cultura dominante; outros indicavam a existência de uma pluralidade de modos diversos de interpretação do mundo. Tal pluralidade, evidentemente,decorria da diferenciação social: não se tratava mais, como nas sociedades simples, de uma divisão do trabalho cultural em "especialistas orientados a partir de um referente cultural comum, mas de uma verdadeira diversidade cultural, por vezes um antagonismo. Assim, o estudo das sociedades complexas levou ao refinamento da noção de Cultura empregada pela Antropologia, e situou-a mais claramente numa perspectiva sociológica.

Toda a discussão sobre o conceito de cultura assume novas dimensões quando é contextualizada no que se chama de sociedade complexa e/ou heterogênea. Em principio a nocão de complexidade está ligada a divisão social do trabalho mais especializada, mais segmentadora na sociedade urbana industrial contemporânea, com a formação de uma rede de instituições diversificadas, mais ou menos ligadas dentro de um sistema, mas com fronteiras discerniveis. Sahlins (1976) coloca que na sociedade ocidental capitalista particularmente, embora com a distinção em domínios e instituições, o foco da produção simbólica, i.e., cultural, se dá ao nivel das relações de produção, ao contrário de sociedades tribais onde o foco estaria nas relações de parentesco. Isto não significa que não existam outras áreas de produção simbólica significativas mas que estariam mais ou menos contaminadas ou fortemente influenciadas pelas relações de produção. Em outros tipos de sociedade podem ser encontradas situações exatamente inversas, onde as relações de produção seriam menos significativas como focos de produção simbólica. Sahlins está preocupado em mostrar que a produção simbólica, cultural, pode variar em termos de focos e ênfases de acordo com o tipo de sociedade e momento histórico mas que em qualquer sociedade ela dá sentido, significado e intencionalidade às ações e comportamentos sociais.

Isto não significa que em toda sociedade, complexa, ao se atingir um certo nivel de especialização na divisão social do trabalho, se encontre a área das relações de produções como o foco principal de produção simbólica. Há outros tipos de complexificação que não estão associados ao capitalismo ou ao industrialismo, como a da sociedade indiana tradicional analisada por Dumont (1966), que teria com referência cultural básica um modelo de organização social hierárquico com grande independência em relação ao sistema de produção, que, contudo, apresentava grande variedade e riqueza institucional. Há, portanto, que distinguir vários tipos de sociedade complexa, mais ou menos tradicionais, capitalistas ou não, de base industrial ou de base agrária, etc.

A noção de heterogeneidade por sua vez é mais cultural, enquanto a de complexidade seria mais sociológica embora certamente estejam vinculadas. Não só a divisão social do trabalho, gerando experiências sociais e visões de mundo altamente diferenciadas, mas a própria coexistência de grupos de origens étnicas e regionais muito variadas concorrem para a existência de várias tradições que, embora tenham, obviamente, pontos comuns, podem apresentar forte especificidade. A noção de subcultura normalmente está associada a sociedade complexa, quer esteja se falando de classe, região ou etnia, como, por exemplo, cultura ou  subcultura operária, gaūcha, negra, etc.(** O conceito de subcultura pode ser aplicado ainda a unidades menores como profissao, familia, area, etc. Dependera de eficacia e operacionalidade empregá-lo ou não). Aí se coloca o problema da dominância. Em uma sociedade estratificada, organizada em torno de um Estado Nacional, há desequilibrios e distribuicão desigual em termos de poder, prestigio, recursos em geral. Neste caso é preciso distinguir as noções de cultura e ideologia. Dentro da tradição marxista ideologia está basicamente associada a classe social. Assim, dentro de uma sociedade capitalista clássica a burguesia é a classe social que controla os meios de produção e que domina mais ou menos diretamente o poder politico, o aparelho de Estado, as instituições em geral. Aí s .diz que a ideol-gia burguesa, por todas essas razões, é dominante, fazendo com que os seus interesses passem por ser os interesses da sociedade como um todo, mascarando as contradições existentes, sendo a principal, no caso, capital X trabalho. Se a partir dai se entende que o modo de vida, os valores, a visão de mundo burgueses constituiriam uma cultura, poder-se-ia falar em uma cultura dominante. Enquanto ideologia enfatizaria mais os aspectos propriamente politicos de conflito e dominação, a noção de cultura seria, de certa forma, mais ampla ou menos precisa, desde que uma cultura burguesa incorporaria várias tradições, heranças — humanismo, cristianismo, por exemplo —, que não estariam na origem necessariamente ligadas à condição de classe da burguesia. Ideologia estaria vinculada as relações sociológicas entre tipos especificos de grupos sociais, enquanto cultura referir-se-ia a produção simbólica em geral e que, portanto, também traria dentro de si as contradições existentes ao nivel da sociedade propriamente dita.

Na cultura burguesa há lugar para manifestações e expressões de símbolos mais ligados a experiências aristocráticas, contemporâneas ou não, operárias, camponesas ou indígenas, e na própria medida em que está se falando de capitalismo, o foco da produção simbólica são as relacões de produção inclusive com os conflitos existentes. Assim, enquanto a ideologia está colada aos interesses de classe específicos, sendo um instrumento de dominação, a cultura da classe dominante abarca manifestações dos grupos sociais mais variados, podendo se confundir em um determinado momento histórico com a cultura nacional. Assim, quando se fala em cultura brasileira, italiana ou marroquina, não se está necessariamente ignorando os aspectos socio-políticos que acompanham os fenômenos culturais, mas reconhecendo-se que em uma determinada conjuntura ou periodo histórico é possivel traçar-se o perfil da cultura de uma sociedade em que possam inclusive ficar claros, ao nível da produção simbólica, as contradições e conflitos existentes. Enquanto a ideologia uma vez assumida ou conscientizada, superadas as distorções e mascaramentos, tenderia a ser coerente, a cultura seria o locus da própria contradição e, até certo ponto, da incoerência, pois a produção simbólica, manifestando-se em vários níveis, inclusive os mais inesperados, não pode ser compreendida apenas como uma produção, resultado, consequência, reflexo de conflitos de classe.

Cultura Erudita e Cultura Popular

Uma outra distinção que se costuma fazer é entre cultura de elite ou erudita e cultura popular ou, em certos casos, de massa (Gans, 1974). A idéia básica é que haveria uma diferença qualitativa entre esses dois tipos de cultura — uma mais sofisticada, tendo como foco as principais contribuições e realizações da sociedade em suas formas mais refinadas e de maior valor estético e criativo, enquanto a segunda seria mais rústica, menos cosmopolita, e de valor até duvidoso. No caso da cultura de massa então o seu valor seria ainda mais contestado, apontando-se seu caráter barateador e vulgarizante. É claro, portanto, que é uma classificação carregada de julgamentos de valor, e até,de preconceitos. No caso da cultura popular pode-se cair numa posição inversa e passar a valorizá-la como mais autêntica, mais pura, principalmente quando tida por intocada e não contaminada. A cultura de elite, em contraposicão, seria considerada artificial, decadente, inautêntica. De uma forma ou de outra polarizá-se a classificação e fica-se no nivel do estereotipo. É claro que existem modos de vida, visões de mundo mais caracteristicos das camadas populares, mas a categoria popular ē muito pouco precisa em termos sociológicos e pressupõe uma homogeneidade que está longe de ser comprovada nos estudos existentes sobre camponeses, operários, camadas médias baixas ou outros segmentos e setores que pudessem ser incluidos nessa classificação. Da mesma forma falar em elite pressupõe um monolitismo nas camadas mais altas da sociedade que poderia colocar na mesma categoria grandes proprietários rurais, alta burguesia, oficiais generais, setores da intelligentzia, administradores, etc. Embora obviamente existam aspectos comuns e mesmo interesses politicos em determinados momentos coincidentes, isto está longe de constituir categorias explicativas para a compreensão da lógica da prodcão simbólica na sociedade. Ou seja a oposição elite X povo em termos de cultura é muito vaga e pouco precisa.

Quanto a cultura de massa, sua própria definição e limites são altamente problemáticos. Como distinguir na sociedade urbana industrial, onde o jornal, o rádio, a televisão, a propaganda atuam e estão presentes em quase todos os niveis da informação, uma cultura que não seja de alguma forma de massa? Evidentemente existem segmentos da sociedade mais vinculados ou mais exclusivamente vinculados a certos meios de comunicacão de atuação mais ampla mas, por exemplo, o consumo de discos de música erudita ou de livros, por mais exotéricos ou refinados os seus assuntos, não está também dentro da lógica da sociedade industrial de consumo? A questão então se desloca para julgar o mérito das obras ou dos produtos que estão sendo consumidos e este é um dos terrenos mais escorregadios e talvez improdutivos em que as ciências sociais possam entrar. Se, como já foi visto, uma das grandes conquistas da antropologia foi, justamente, passar a procurar captar o ponto de vista do outro, tentar perceber a visão de mundo dos grupos estudados em seus próprios termos, essas tentativas de hierarquização representam uma possibilidade de retrocesso. Da mesma forma a noção de cultura da pobreza, que teve em Oscar Lewis seu principal teórico, também conduz a uma armadilha teórica pois inverte a questão ao colocar a categorla pobreza como razão explicadora universal de um determinado tipo de estilo de vida e visão de mundo sem realmente analisar sistematicamente as relações entre os grupos sociais e suas produções simbólicas. 

Gans, preocupado em fazer análise mais complexada sociedade americana, procura distinguir taste cultures em que a ideia de uma opção por determinado estilo de consumo cultural permitiria traçar um quadro mais flexivel e rico sem deixar de identificar variáveis sociológicas capazes de estabelecer limites e possibilidades, como a: classe social, a etnia e a faixa etária (Gans, 1974). A noção de que existe uma certa margem de liberdade e iniciativa parece ser útil, especialmente, para a compreensão da sociedade complexa onde os individuos participam de forma desigual em diferentes "mundos" com produções simbólicas de alguma especificidade e até, em certos casos, conflitantes. Assim é que, movendo-se do trabalho para a familia como membro de alguma religião, no seu lazer, participando de alguma associação ou grupo politico, interagindo em geral com diferentes pessoas de sua rede de relações, o habitante da grande metrópole, especialmente, se vé participando de códigos e valores que podem guardar pouca coerência entre si, provocando respostas e decisões muitas vezes contraditorias (Wirth, 1966). Ou seja, o mapa social está longe de ser claro e as pessoas são levadas, consciente ou inconscientemente, a tomar decisões que vão marcar tipos de trajetórias possiveis dentro de uma sociedade. A busca da lógica dessas decisões pode ser um dos caminhos para entender a maior ou menor eficácia dos sistemas simbólicos envolvidos. Sahlins argumenta que na sociedade capitalista ocidental as relaçoes de produção constituem o principal foco de manifestação da produção simbólica mas isto não deve implicar em uma forma de reducionismo que desconheça não só as mediações como o fato de que outros focos existem e podem ser decisivos e determinantes em varias situações e momentos da vida social. Por outro lado, assinalar a importância das relações de produção na atualização de significados na vida social não implica em reconhecer uma única direção ou tendência no desenvolvimento das relações de produção propriamente ditas. Isto e uma questão de pesquisa cientifica, a verificar. estilo de vida e visão de mundo sem realmente analisar sistematicamente as relações entre os grupos sociais e suas produções simbólicas. 

Cultura como um Código

É importante distinguir os possiveis diferentes sistemas simbólicos que existem em uma sociedade complexa, procurar perceber suas fronteiras e suas ambiguidades. Por outro lado é fundamental compreender como individuos concretos interpretam os símbolos e signos que estão à sua volta, como internalizam e a que decisões chegam em momentos de opção tanto em situações explicitamente dramáticas da história de uma sociedade quanto ao nivel do cotidiano, no que Raymond Firth chamou de organização social (Firth 1975). Esta idéia de que a sociedade e a cultura estão sempre se fazendo, que não são entidades estáticas pairan-o sobre os individuos também é uma contribuicão importante a ser assinalada (Leach, 1954). Os individuos concretos, em suas biografias, interpretam, mudam e criam simbolos e significados, evidentemente vinculados a uma herança, a um sistema de crenças. Com isso recupera-se a idéia de que os individuos também desempenham o pape1 de agentes na transformação e mudança da cultura e da sociedade e não são meros joguetes de forças impessoais. O fato de que as pessoas nascem dentro de um sistema sócio-cultural já dado não quer dizer que este sistema não esteja sempre se fazendo através das biografias individuais. Não é necessário ter consciência e percepção do sistema enquanto totalidade (problemática) para influenciá-lo através de ações e interpretações em que os símbolos são manipulados e transformados diante de circunstâncias e situações novas. Embora um individuo sozinho não invente uma cultura, é através das interações dos individuos desempenhando e reinventando papéis sociais que a história se desenrola. Entendendo-se a cultura como um código, como um sistema de comunicação, percebe-se o seu caráter dinâmico ao produzir interpretações, significados, símbolos diante de uma realidade permanentemente em mudança. Já se disse, em diversas oportunidades, que a sociedade urbana industrial contemporânea apresenta um ritmo e velocidade de mudança particularmente acelerado, em grande parte em função da importância relativa das relacões de producão. Ficam mais claras ainda, portanto, as alterações e transformaçoes ao nivel da cultura que não são meras consequências ou resultados da infra-estrutura, mas que dão sentido e intencionalidade aos processos sociais, seja tendo como foco a religião, o sistema de parentesco ou as relações de produção como no caso da sociedade complexa moderna.

Um dos grandes problemas do antropólogo ao estudar a sociedade complexa moderna é conseguir identificar os diferentes códigos existentes e, ao mesmo tempo, procurar verificar até que ponto e como estão interligados e se formam, constituem uma totalidade que possa ser descrita e analisada. Muitas vezes o investigador é levado a pressupor uma totalidade que coincide com as fronteiras estabelecidas politicamente. Isto pode corresponder ao resultado de investigação científica ou pode ser, simplesmente, um recurso perigoso. É o ponto em que se colocam velhas questōes: o que é mais significativo, por ex., uma população rural que é identificada sociologicamente como sendo camponesa, tendo, portanto, caracteristicas semelhantes a outras populações espalhadas pelo planeta, ou o fato dela estar situada no território de uma nação especifica - Brasil, India, Noruega? Há casos inclusive da língua ou dialeto falado não corresponder a língua oficial do pais, como muitas vezes no México. Até que ponto pode-se falar em uma cultura nacional? Parece-nos, como já foi mencionado, que só se pode superar essa dificuldade com a noção de dominância, em que fique claro que nos casos de uma coexistência, em um determinado territorio com fronteiras politicas, há que não pressupor uma homogeneidade mas sim identificar as relações entre os códigos ou culturas ou subculturas existentes e examinar as relações entre elas, fazendo a pergunta sobre quando, onde e como pode-se falar num predomínio de uma sobre a outra. O trabalho de decodificar essas culturas ou de traduzir os codigos é, na realidade, o trabalho básico de todo antropólogo.

Se a unidade de análise, os limites do código-objeto, são o problema central para o estudo antropológico das sociedades complexas, o método, ou melhor, a postura diante do objeto, também coloca questões importantes. O que se pode conhecer, e como? Diante de uma "outra" cultura, estas perguntas necessariamente se impõem. Mas quanto uma cultura é "outra"? No estudo de subculturas dentro da sociedade do observador, esta é uma dúvida adicional, mais premente do que no caso facilmente "exotizável" de culturas indígenas, não-ocidentais, etc. A natureza e o grau de alteridade que separam a cultura do observador da cultura observada sugerem problemas epistemológicos que vão constituir o ponto cego da Antropologia.

Esta questão é a do relativismo, e a da comunicação intercultural; não é privilégio da Antropologia: o historicismo defronta-se com ela igualmente. Mas foi a disciplina antropológica quem mais elaborou o tema.

Se cada cultura é um universo em si mesmo, se cada homem está penetrado por ele em seus menores atos e pensamentos, como pode o observador sair de si, colocar-se no lugar do outro (mas será isto mesmo?), e retornar? Que ele tenha que retornar, é das regras do jogo — ou não haveria Antropologia. 

Em primeiro lugar, pode-se supor ingenuamente uma capacidade inata de efetuação de uma redução fenomenológica, que permita ao observador "esquecer" suas determinações histórico-culturais — graças, quem sabe, a uma "caridade" (em sentido literal), a um "altruísmo" que implique a renegação do EU em benefício do Outro. Um altruísmo intelectual, diríamos. Na verda-e, isto não é tão ingênuo assim; a recordação de J.J. Rousseau feita por Lévi-Strauss é esclarecedora do sentido profundo da Antropologia (Lévi-Strauss 1973, cap. II). 

A possibilidade deste acesso ao Outro — problemática desde que se admite o caráter sistêmico e hiperdeterminístico de cada cultura em particular — pode ser fundamentada, como esforço para escapar-se ao solipsismo relativista, na natureza humana. Assim, a Antropologia pode postular a universalidade dos mecanismos básicos da mente humana, que sustentam as diversas culturas, e considerar esta diversidade como variação a partir do mesmo repertorio. Donde, aceder ao Outro é realizar um esforço — fundado teoricamente, admite-se — de estabelecer a transformação relativa que distancia duas culturas a partir do mesmo repertório (esta é a posição clássica de Lévi-Strauss, 1950). 

Em outra direção, a concepção da Cultura como um código sustentaria a seguinte formulação: uma vez que uma cultura consiste em conjuntos de regras para a ação(e o pensamento), determinar estas regras e seu funcionamento permite que "entendamos" de dentro o comportamento dos membros de uma outra cultura. Uma visão gramatical: como se, para falar chinês, bastassem algumas aulas de chinês. O que esta visão não leva em conta, é que o sistema de "regras" que define uma cultura é agido, e a competência se atualiza em um desempenho. O domínio das regras efetuado por um nativo é radicalmente diferente do conseguido por qualquer estrangeiro. Esta diferença é a questão. Talvez ela seja irredutivel, e a Antropologia deva se contentar em codificar o vivido pelos Outros. Talvez não seja, mas neste caso corre-se o risco do subjetivismo e, pior, do etnocentrismo disfarsado em compreensão vivida. 

Em qualquer caso, o que parece claro é que a noção de Cultura como meta-código coloca algumas questões fundamentais para a Antropologia. A Linguística mesma, que exportou esta concepção, cada vez mais tem se preocupado com os aspectos da parole (vs. langue), do desempenho (vs. competência), da enunciação (vs. enunciado). Em Antropologia, isto significa uma preocupação detida em observar as formas pelas quais as "regras" culturais são atualizadas pelos agentes. Assim, não basta construir modelos; trata-se de soldar o espaço entre modelo e ação, entre representação e prática. Desde que se admite que a ação é modelada, que a prática representa, exprime simbolicamente aspectos da Cultura, vai-se aceitar que o comportamento individual só tem sentido a partir da Cultura - mas isto não esgotaria a análise, sob pena de um formalismo enrijecedor. 

No caso do estudo de sociedades complexas, o problema se desdobra pela ambiguidade do objeto: o que é comum ao observador e ao observado, o que é diferente — em termos de Cultura? Não se pode mais recorrer ao fácil inconsciente que garante uma comunicação por baixo das barreiras culturais. Trata-se aqui de reconhecer estas barreiras, sob pena de projetar etnocentricamente — com implicações políticas — a visão do observador. E há ainda problemas mais concretos. Reconhecer as distâncias, e portanto esforçar-se por superá-las cientificamente, no caso do contato entre o antropólogo e uma sociedade radicalmente "exótica", talvez seja mais fácil que fazer o mesmo quando se estudam subgrupos dentro da sociedade do antropólogo. Neste último caso, o problema epistemológico está socialmente ancorado. O observado é parte da sociedade do observador. Assim, o confronto não é apenas — ou sobretudo — entre antropólogo e objeto, mas entre representantes de segmentos de um mesmo sistema social. As relações entre estes segmentos determinam previamente o curso da reflexão, o que vai exigir uma vigilância epistemológica de outro tipo. O que é ser "observador", em casos como este? Quem pode observar, e o que a posição de observador deixa ver, e o que ela não deixa?

Se, no caso da Antropologia das sociedades não-ocidentais, o movimento era o da transformação do exótico (dado previamente) em familiar (através da reflexão), o estudo de sociedades complexas supõe a transformação do familiar (dado, e dado pré-conceitualmente) em exótico — o distanciamento antropológico (ver Da Matta, 1974).

No entanto, essas noções de distância entre pesquisador e objeto são problemáticas e a própria noção de familiar deve ser examinada com cuidado. "O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto, conhecido. No entanto estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente" (ver Velho, Gilberto). Ou seja, estamos, no nosso cotidiano, como membros de uma sociedade lidando com situações e pessoas com que ou quem podemos estar acostumados, habituados, mas isso não significa que saibamos, conheçamos a sua inserção na vida e processo social, que entendamos a lógica desta inserção. A familiaridade pode ser, em muitos casos, uma fonte de distorções, pois os nossos mapas sociais são, em grande parte, construídos em cima de estereótipos e rótulos. Por outro lado, o fato de ser membro de uma determinada sociedade e participante em uma cultura especifica pode permitir um tipo de percepção e sensibilidade, a partir de uma vivência, dificeis de serem atingidas por um observador de fora. Portanto, a possibilidade do antropólogo procurar decodificar a propria cultura em que está inserido, por mais que envolva riscos e dificuldades, parece ser uma etapa inevitável do desenvolvimento da pesquisa antropológica, em que o esforço de relativização chega a um ponto crucial. Isto só pode ser possível num momento em que já existe um vasto conhecimento a respeito das "outras" culturas, o que pode dar uma dimensão comparativa como referência ao pesquisador de sua própria sociedade e cultura. 

Gilberto Velho
E.B. Viveiros de Castro

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FONTE:
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